
Por Anna Telles
Muitas pessoas pensam que se entregar ao divino é como ganhar um passe livre da vida. Como se a fé fosse um escudo que nos protege de todo mal, de toda dor, de toda dificuldade. Como se Deus fosse uma espécie de seguro de vida espiritual. Mas não é bem assim que funciona.
Quando você escolhe servir à luz, quando de fato se coloca a serviço de algo maior, o que acontece por mais estranho que seja, é que as coisas não ficam mais fáceis. Elas ficam muito mais intensas.
É como se, ao acender uma vela num quarto escuro, todas as sombras que estavam quietas começassem a se mexer. A luz incomoda o que prefere ficar escondido. E isso vale tanto para o que está dentro de nós quanto para as pessoas e situações que nos cercam.
Já reparou como, depois de uma experiência profunda de oração ou meditação, às vezes vem um período difícil? Não é coincidência. Não é azar. É a vida testando se nossa entrega é real ou se é só um momento bonito que passa.
As forças contrárias existem. E elas percebem quando alguém está realmente comprometido com a luz, com o bem. Aí começam os ataques, vem o desânimo que não tinha motivo, vêm os problemas que parecem se multiplicar, chegam os conflitos…
E é exatamente nesse ponto que boa parte das pessoas desiste. Os pensamentos que chegam são do tipo: “Se Deus está comigo, por que está tudo dando errado?” Mas talvez a pergunta certa seja: “Será que essas dificuldades não são o caminho que preciso?”
A pedagogia de Deus
Tem dois tipos de pessoa na vida espiritual, quem entende sobre fé e quem vive a fé.
Quem entende fala bonito sobre Deus, sobre propósito, sobre plano divino. Tem as respostas todas na ponta da língua. Mas quando chega a hora do aperto, quando a vida pega mais firme, essa pessoa se revolta. “Onde está Deus agora? Por que não sou protegido se sirvo a Ele? Fiz tudo certo!”
Já quem vive a fé não tem tantas respostas assim. Mas tem algo que vale mais, a confiança. Quando tudo desmorona, essa pessoa não entende o porquê, mas sabe uma coisa: “Eu não estou sozinho nisso.” É uma diferença sutil, mas é tudo.
Porque tem momentos na vida devocional em que Deus parece que some. Tudo fica escuro, parece um deserto. O coração parece uma pedra. E vem aquela sensação terrível de: “Fui abandonado.”
Mas será que foi mesmo? Ou será que é justamente nesses momentos que aprendemos a confiar sem precisar sentir a presença dEle? A orar sem precisar de consolação? A servir sem esperar recompensa? O silêncio divino não é ausência, ele é pedagógico. É Deus nos ensinando que nossa fé não pode depender de emoção, de sensação, de prova. Tem que ser mais sólida que isso.
Mesmo pessoas comuns vivem isso. Aquela avó que perdeu o filho e continuou cuidando dos netos com o mesmo carinho. O pai de família que ficou desempregado e, em vez de se revoltar, ajudou vizinhos em situação pior. A mulher que descobriu uma doença grave e usou a experiência para consolar outros pacientes. Eles não tinham respostas, mas tinham a entrega.
O que a devoção realmente oferece
Por isso quem está verdadeiramente sob a proteção da luz não é poupado da dor. Mas é treinado e recebe algo muito melhor que está na capacidade de atravessar a dor sem ser destruído por ela. Quando chega a tempestade, a pessoa devota não fica indignada. Não fica perguntando “por que comigo?”. Ela limpa o altar, acende a vela, arruma as flores, e continua. Não porque é forte. Mas porque algo dentro dela já decidiu: “Eu confio e vou até o fim, custe o que custar.”
E isso não é uma fé cega, é muito lúcida. A pessoa sabe que o caminho é desafiador. Sabe que vai doer. Mas escolhe continuar porque reconhece que, no fundo, não há outro caminho que valha a pena.
Aí está a diferença entre o que a vida devocional promete e o que ela realmente oferece. Não é facilidade. Não é ausência de problemas. Não é uma vida cor-de-rosa.
O que ela oferece é paz que não depende das circunstâncias, que não é condicionada. É força que vem de uma fonte inesgotável, que não depende de nada externo. E a certeza profunda de que, aconteça o que acontecer, estamos exatamente onde precisamos estar.
Mesmo nos momentos mais difíceis, sabemos que não estamos à deriva, há um fio invisível que nos segura, uma mão que nos guia, alguém que nos carrega no colo sem percebermos.
Isso não torna a vida mais fácil. Mas torna a vida mais verdadeira. E no final das contas, importa mais viver uma vida verdadeira, mesmo que seja mais difícil que a vida de mentira, de ilusões.
Vale a pena parar e olhar também para o que chega de bom, a transformação positiva, a capacidade de lidar com situações que antes nos quebrariam completamente. A paz estranha que às vezes surge do nada, mesmo no meio do caos. Na força que descobrimos ter quando pensávamos que não restava nada.
Lembrarmos das graças que recebemos, das coincidências impossíveis, as portas que se abriram na hora certa, as pessoas certas que apareceram no momento exato. Como o coração se expande, como passamos a ver o mundo com outros olhos, de como certas coisas que antes nos tiravam o sono deixa de nos afetar.
A devoção tem uma leveza que só conhece quem passou pela travessia completa, não a leveza de quem nunca sofreu. É a leveza de quem sofreu e não quebrou, de quem desceu até o fundo do poço e descobriu que, mesmo lá, não estava sozinho.
Essa leveza é a paz do desapego, de quem parou de lutar contra a vida e aprendeu a dançar com ela, mesmo quando a música está triste.
O caminho devocional é muitas vezes pesado sim. Mas é um peso sagrado. É o peso de carregar um pouco da responsabilidade do mundo. De ser canal de luz num lugar que precisa de luz.
Esse é o verdadeiro milagre da devoção, não nos tornar imunes ao sofrimento, mas nos tornar maiores que ele. E isso, por mais difícil que seja o caminho, é também uma grande honra que alguém pode receber nesta vida.
Carregar um pouco da luz do mundo não é fardo, é privilégio. E quem entende isso não pergunta mais por que o caminho é difícil. Pergunta: Como posso ser digno da luz que carrego?